- Cultura, Sociedade, Arte e Educação
Onde está o problema?
Na segunda metade do séc. XIX, Edward-Burnett Tylor define cultura como “um conjunto que compreende os conhecimentos, as crenças, a arte, a moral, as leis, os costumes e outras capacidades e usos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade”.
Na perspectiva da sociologia e da antropologia, a cultura diz respeito a toda a vida social, visto que abarca os seus sistemas de ideação, de representação e de expressão. Dito de outra forma, ela consiste na própria sociedade na medida em que oferece às pessoas e aos grupos padrões de conduta.
António Teixeira Fernandes afirma que “a vida humana recebe da cultura o seu sentido e a sua orientação”, pois “é ela que, clarificando a quotidianeidade, permite ao homem (…) descobrir-se como ser com os outros no mundo, isto é, descobrir-se enquanto ser ao mesmo tempo individual e social e unificar os seus anseios pessoais em projectos colectivos”.
E segundo este autor, a cultura não se esgota na satisfação de necessidades materiais imediatas, pois voltada como está para a fruição da existência, enaltece os valores e a qualidade de vida.
Posto isto, centremo-nos agora na Arte enquanto manifestação indubitável de cultura. Mas… o que é a Arte? Recorrendo à definição mais simples e mais usual, é a tentativa de criar formas deleitáveis. Assim sendo, parece evidente que o seu campo é justamente o da fruição da existência, enaltecendo assim a qualidade de vida e valores que são, sobretudo, da natureza estética e emocional.
Como refere Herbert Read, tais formas deleitáveis comprazem o nosso sentido do belo, sentido que se satisfaz quando podemos discernir uma unidade ou harmonia de relações formais entre as nossas percepções sensíveis. Estamos então no domínio da estética. A Arte, como dissemos, enaltece os valores estéticos. E isto acontece quando as simples percepções de qualidades materiais (como as cores, os sons, os movimentos, etc) são arranjadas em formas e padrões agradáveis.
Todavia, a Arte, como também referimos, enaltece valores de carácter emocional. E isto acontece, justamente, quando se faz corresponder um certo arranjo de percepção (que está no âmbito do sentido estético) a um determinado estado emotivo ou emocional. Neste caso, deu-se expressão a essa emoção ou sentimento.
Posto isto, e voltando a citar Herbert Read, a finalidade da Arte é a comunicação de sentimentos. E citando agora Duarte Jr., “a Arte é uma maneira de despertar o indivíduo para que este dê maior atenção ao seu próprio processo de sentir”. Parece pois evidente que só sentindo é que se pode comunicar um sentimento.
De tudo quanto já foi dito podemos retirar duas ideias essenciais:
· a primeira, a de que a cultura permite ao Homem descobrir-se como ser com os outros no mundo;
· a segunda, a de que a finalidade da Arte é a comunicação de sentimentos.
Se assim é, parece pertinente perguntar se será apenas ao nível da fruição da existência que a importância da Arte se manifesta? Por tudo aquilo que implica não é a Arte detentora de um enorme potencial educativo, se olharmos para a Educação como um processo que visa conduzir à aquisição funcional dos saberes, do saber fazer e do saber ser?
E quando falamos aqui em Educação estamo-nos a cingir à chamada educação genérica e, em especial, à educação básica que é, actualmente, de nove anos em Portugal, e que, sendo imposta pelo Estado, é também designada por ensino obrigatório. E este carácter obrigatório deriva justamente da sua finalidade: dotar os cidadãos de todo um conjunto de conhecimentos e competências que esse Estado reconhece como necessárias ao exercício consciente e responsável da cidadania.
E, curiosamente, constata-se que entre as várias áreas curriculares que integram esta educação básica se encontram justamente as expressões artísticas. Isto é, claramente, e pelo menos na “teoria”, o reconhecimento da sua importância na sociedade. Mas uma questão surge então como inevitável: qual o papel ou função das expressões artísticas nesta educação considerada básica, quando parece que, como vimos há pouco, a Arte aparece ligada à fruição da existência?
E esta questão remete-nos forçosamente para uma outra: a das finalidades da Educação. Sabe-se que elas são determinadas pelas expectativas da sociedade, embora o seu formato final seja determinado pelo poder político. Mas então, se são determinadas pela sociedade, olhemos um pouco para as sociedades modernas, para tentarmos compreender aquilo que parece ser uma contradição: por um lado, o reconhecimento da importância da experiência artística e cultural na formação dos seus cidadãos e, por outro a “crise” ou o “vazio” que se vive ao nível da cultura e das artes.
Ora, desse olhar sobre as sociedades modernas podemos constatar, entre outras coisas:
· uma cisão básica da personalidade humana: uma cisão entre o sentir e o pensar; entre a razão e as emoções;
· que a nossa civilização hipervaloriza a razão em detrimento de 2 dimensões básicas da vida: os valores e as emoções;
· a primazia do trabalho, devendo-se a acção orientar na direcção da produção de bens de fins utilitários, o que leva a relegar o lúdico e o estético para posições inferiores.
Estas características das sociedades modernas permitem compreender melhor a contradição atrás referida. Na verdade, elas deixam transparecer um total desajustamento entre o campo das intenções – da construção teórica do que é reconhecido e valorizado - e o campo da acção – da realização prática das prioridades reais. Ora, parece-nos que deste desajustamento não poderá nunca advir um bom resultado.
E muitos foram os pensadores que, confrontados com estas características das sociedades modernas, vieram falar da necessidade de reestruturar de forma radical esta civilização, alertando para os múltiplos riscos que ela acarreta. Segundo eles,
· hipervalorizando a razão, as tais dimensões básicas (valores e emoções) não possuem canais para se exprimirem e desenvolverem. O trabalho utilitário, não criativo e muitas vezes sem sentido, tira o lugar à festa, à dança, ao ritual, à arte, e a violência torna-se a forma privilegiada de expressão das emoções;
· por outro lado, o indivíduo isolado torna-se o valor supremo, e cada qual deve lutar contra os outros em favor do seu progresso. Não será este isolamento a negação da cultura? Não é verdade que a cultura “permite ao Homem descobrir-se como ser com os outros no mundo”? Parece que em vez de com os outros ele aparece contra ou outros.
Por outro lado, também sem os outros a comunicação não é possível. Comunicar implica interagir com os outros e comunicar não se esgota na comunicação escrita. A comunicação reveste muitas formas, sendo a comunicação verbal apenas uma delas. E só no contacto interpessoal é que outras formas de comunicação se podem revelar.
O que acontecerá então à Arte, se a sua linguagem é, em grande parte, não verbal e se a sua finalidade é a comunicação de sentimentos?
Este isolamento crescente dos indivíduos não será também fruto dos enormes e rápidos progressos das tecnologias de informação e comunicação e, sobretudo, da sua utilização de forma menos adequada?
Mas voltemos então à Educação. Deixando aqui de lado a questão complexa das finalidades e sua operacionalização, centremo-nos no papel que a Arte aí pode ter. Dito de outra forma, qual é, afinal, a importância da Arte na Educação? Sem nos querermos alongar sobre esta questão, pode-se dizer que a Arte:
· permite dar espaço ao emocional, contrariando a tendência intelectualista ou cognitivista da escola, contribuindo assim para o equilíbrio entre ambos, indispensável ao bem estar e ao desenvolvimento do ser humano enquanto tal;
· gera dinâmicas de grupo, contrariando o isolamento tão prejudicial do indivíduo, contribuindo assim para a sua socialização;
· leva-nos a conhecer aquilo que não temos ou não tivemos oportunidade de experienciar, o que é fundamental para que se possa compreender as experiências vividas por outros. Possibilita-nos, assim, o acesso dos sentimentos a situações distantes do nosso quotidiano, construindo as bases para a sua compreensão. É justamente aquilo que acontece quando, através do cinema, do teatro, da música ou em frente às telas, “sentimos” as emoções que outros sentiram;
· agiliza a nossa imaginação, contrariando os limites impostos quotidianamente pela intelecção e pelo sentido utilitário da realidade.
Na Conferência Mundial sobre Educação Artística organizada pela UNESCO e realizada em Lisboa em Março de 2006, que tinha como tema “Desenvolver as capacidades criativas para o século XXI”, Manuel Damásio, na sua intervenção de abertura, afirmou, referindo-se às Artes e às Humanidades, que estas disciplinas não são um luxo, mas antes uma necessidade, pois para além de contribuírem para formar cidadãos capazes de inovar, constituem um elemento fundamental no desenvolvimento da capacidade emocional indispensável a um comportamento moral íntegro. Referiu ainda a necessidade e urgência de voltar a ligar os processos cognitivo e emocional, uma vez que opções morais íntegras exigem a participação simultânea da razão e da emoção.
Feita esta breve reflexão, impõe-se fazer uma pergunta: Se o sistema educativo, apesar das características referidas das sociedades modernas, parece, de facto, contemplar as áreas artísticas dando, dessa forma, sinais de preocupação com as questões culturais, por que é que parece que a sociedade portuguesa – não sendo o Tramagal excepção – está, de uma forma geral, tão desligada das questões culturais?
Parece-nos que, entre outras causas, é possível apontar:
- o nível insatisfatório do ensino ministrado, em muitos casos, e em especial na educação básica, no que respeita às expressões artísticas. Desde logo, porque não houve formação atempada de profissionais capazes de as trabalhar de forma adequada e eficaz. “A carroça foi posta à frente dos bois”! Generalizou-se sem que houvesse profissionais em número suficiente ou devidamente preparados. A formação veio depois e, em muitos casos, com muitas deficiências. Quais são as consequências? Uma delas é o afastamento dos alunos, futuros cidadãos, das áreas artísticas, que passam a não valorizar ou mesmo a desprezar;
- o isolamento crescente das crianças e dos jovens, que estão cada vez mais fechados sobre si, alimentando muitas vezes um mundo virtual muito distante do mundo real, o que coloca o problema do confronto com os outros, gerando, nalguns casos, situações de violência, pela incapacidade de negociar e de ceder perante o outro;
- a desvalorização social das áreas artísticas ( e isto remete-nos forçosamente para as características das sociedades modernas acima referidas). Por um lado, as famílias que desvalorizam estas áreas, pois, como se ouve muitas vezes, “não dão de comer a ninguém”. Por outro, é a própria Escola que hierarquiza as diferentes áreas curriculares, sendo as áreas artísticas, salvo raras excepções, desvalorizadas e tratadas como “áreas de segunda”;
- a falta de uma política cultural coerente e efectiva. À semelhança de outras áreas a cultura não é pensada de forma abrangente. Na nossa opinião, pensar a Cultura de uma forma abrangente passaria, desde logo, por uma articulação muito forte com a Educação. A isto se junta o facto de a cultura “sair cara”!;
- finalmente, a desarticulação entre as várias instituições educativas e culturais que, para além de viverem, muitas vezes, de costas viradas umas para as outras, ainda se envolvem, por vezes, em conflitos e disputas inúteis que, para além de não construírem nada de positivo, ainda contribuem para o seu desprestígio, em nada dignificando a cultura e as artes de que deveriam ser guardiães.
Ao chegar ao fim desta breve reflexão, julgamos ser possível afirmar que os problemas que se fazem sentir ao nível da Cultura e das Artes (enquanto expressão dessa Cultura) nada mais são do que o reflexo da crise por que passam a Sociedade e a Educação que, num processo quase estonteante e recheado de incoerências e ambiguidades, parecem não ser capazes de “acertar o passo” de forma a promover o desenvolvimento efectivo que, inevitavelmente, traria consigo a valorização da Cultura, tão necessária ao equilíbrio das sociedades.
Peço desculpa pelo tempo que vos tomei ao trazer todas estas questões, mas parece-me que para apontarmos caminhos, precisamos de saber, de forma esclarecida, para onde queremos ir e onde queremos chegar. Só depois de sabermos isto e de saber “quem queremos levar connosco” e quais são os recursos de que dispomos, à partida, é que poderemos encontrar as melhores soluções e estratégias que permitam atingir os objectivos que estabelecemos de forma informada e consistente.
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